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Resenha | 1618 de Cesar Bravo



Cesar Bravo oferece em 1618 uma das explorações mais profundas e assertivas dos medos e ansiedades que constituem a nossa sociedade contemporânea. Um olhar inteligente e crítico sobre o horror, a partir de uma perspectiva multifacetada que explora a tensão entre o presente e o passado, as camadas geracionais de ocupação humana em um local e o conflito entre a razão e a superstição para construir uma narrativa sufocante cuja força advém do equilíbrio perfeito entre o medo da crueldade humana e de uma ameaça insólita quase imperceptível. O próprio medo é abordado pelo viés da memória coletiva construída pela comunidade e suas diferentes manifestações em níveis individuais, oferecendo um conjunto de personagens únicos que interage com o insólito a partir de suas particularidades. 

O nosso processo de percepção, de construção e significação das experiências individuais está profundamente ligado às memórias que são pensadas coletivamente, ou seja, nossos medos são um reflexo da própria organização social a que estamos inseridos. A nossa capacidade de lembrar de um acontecimento, assim como a ótica específica sob a qual tal acontecimento é lembrado e entendido, está associada ao pertencimento ou não a certos grupos, cujas narrativas coletivas de memória impactam no ato de lembrar individual. A história de 1618 é eficaz porque compreende esse contexto e mostra como diferentes pessoas, de diferentes núcleos sociais, interagem com um fenômeno sobrenatural e como essa reação está associada as feridas que constituem nossa coletividade como nação. Feridas provenientes da exploração de classe, misoginia, violência, paranoia e diversos preconceitos e tabus sociais que formam o corpus imagético e simbólico aos quais as pessoas recorrem diariamente para dar significado e verossimilhança a sua percepção do mundo.

Na história de 1618, os habitantes da cidade de Terra Cota vivenciam o mesmo acontecimento misterioso para o qual inicialmente não há nenhuma explicação, uma anomalia tecnológica que expõe publicamente os segredos e pecados mais sombrios de algumas das pessoas mais respeitadas da comunidade, através de mensagens de celular, e que causa estranhos fenômenos de comunicação com aparelhos de rádio sintonizados a uma frequência específica. A forma como cada um dos personagens vai compreender e agir com relação ao acontecido está diretamente relacionada a construção coletiva de percepção de seu núcleo social, noções comuns que darão significado para aquele evento, que a partir de diversos contextos específicos ganhará conotações de experiência mística, profana, sagrada, científica, religiosa, assustadora, entre outras. É a discussão dessa diversidade de percepções da realidade e sua incapacidade de se compreender mutuamente, que faz com que a trama de 1618 seja tão atual e reflita cirurgicamente sobre processos sociais que experimentamos nos últimos anos. 

Cesar Bravo consegue transformar a figura da cidade de Terra Cota em um personagem vivo e pulsante que interage com seus habitantes, sua essência não só foi modificada por décadas de intervenção e ocupação humana, mas também impactou no comportamento e no estado psicossocial de seus residentes. O resultado é uma narrativa que em termos de excelência se aproxima das composições complexas das obras de Peter Straub, não só apresentando personagens profundos que possuem arcos satisfatórios de evolução ao longo da história, como também dissecando suas psiques e relações com o contexto e cultura que os formam. Sua escrita continua com a receita já conhecida de seu sucesso: descrições viscerais e impactantes, construção claustrofóbica de tensão, mesclando rompantes de horror com humor, personagens verossímeis e diversas referências ao seu universo compartilhado. 1618  de Cesar Bravo é um dos melhores livros de terror brasileiros das últimas décadas. 

  1618 (2022) | Ficha Técnica 
   Autor: Cesar Bravo
   Editora: Darkside Books
   Páginas: 368 páginas
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   Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)

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2 Comentários

  1. Um livrão mesmo! Eu gostei demais da leitura. E adorei sua resenha, Rafael!

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  2. Eu adorei VHS e DVD, mas dessa vez pra mim não rolou, achei a história fraca os personagens artificiais e sem personalidade, modismos e referências a nossa cultura me pareceram gratuitas, não orgânicas, enfim acho que talvez o Cesar se saia melhor como Contista pra mum

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