Desafio ao Imortal é uma coletânea de contos da brasileira Eico Suzuki que permeia o insólito, a ficção científica e a cultura japonesa, oferecendo um conjunto único de histórias que refletem diversos aspectos sociais pertinentes à própria identidade da autora. Uma das discussões principais é realizada à partir da ótica da descendência japonesa, especialmente pela memória traumática do pós-Segunda Guerra Mundial e das ansiedades sociais com relação a Guerra Fria. Esse elemento é visível em contos como "A bomba", que oferece uma visão poética e pungente em primeira pessoa, sobre a experiência de estar em meio a explosão de uma bomba atômica; "O Semeador", onde um astronauta, viajando sozinho pela imensidão do espaço, reflete sobre a ameaça atômica na humanidade e a solidão; e em "A molécula d'água" que mostra a perspectiva de uma molécula desde alvorecer dos tempos históricos até a era atômica.
Eico Suzuki também se preocupava com a herança que as ações da sua geração deixariam para as gerações futuras, como no pós-apocalíptico "Flores do Gelo", ambientado em um mundo congelado após um desastre climático causado por bombardeamentos atômicos, onde crianças se deparam com uma relíquia de um passado distante, uma flor congelada. Essa discussão é ainda mais explícita em "Desafio ao Imortal" que traça com maestria um paralelo entre as escolhas de uma geração e seus impactos na vida dos seus filhos e netos. Na história a protagonista descobre o segredo por trás de sua existência claustrofóbica e restritiva ao chegar à maioridade, em um futuro apocalíptico, duzentos anos após a década de setenta.
Suas histórias também apresentam metáforas interessantes sobre outras questões, como a de classe em "Elevadores", onde diferentes conjuntos de personagens tem acesso a diferentes tipos de elevadores em um edifício de cento e oitenta andares, partindo desde um elevador lento que demora horas para completar o trajeto até um elevador instantâneo acionado pelo pensamento. E na segunda parte do livro, composta pela novela "A Rosa", que é baseada em fatos reais e discute a dualidade da identidade japonesa-brasileira. O insólito começa a se inserir em histórias como "Pas de quatre", que possui uma deliciosa aura de Além da Imaginação, onde a protagonista se vê em meio a noite de estreia de uma companhia de balé sem ter nenhuma lembrança de ninguém e de nada, e em "Vento" sobre a experiência de um recém falecido lidando com seu novo estado incorpóreo.
O horror aparece de forma mais explícita em três contos. Em "A Testemunha", um menino aposta com seus amigos que consegue passar uma hora no cemitério, entre meia noite e uma da manhã, e durante o desafio se descobre em meio a uma noite especial, quando as almas dos mortos podem abandonar o estado de inanição de seus corpos e resolver questões deixadas em aberto neste plano. "A visita", apesar de seu final clichê para os parâmetros contemporâneos, possui uma interessante ambientação gótica, onde uma jovem é convidada pelo colega de faculdade a conhecer suas pinturas em uma mansão de aspecto medieval, ela é recebida por uma procissão de senhoras em luto e por uma estranha hostilidade por parte de seus familiares. Inspirado numa peça de teatro clássico japonesa, "Túmulo Maldito", oferece uma atmosfera de pesadelo visceral fantasmagórico, ao narrar as desventuras mortais de uma estudante de medicina, que se perde em meio a uma viagem para encontrar um grupo de colegas e decide pernoitar numa estranha construção à beira de estrada.
Desafio ao Imortal é uma pérola para fãs de terror, sua escrita metafórica e cheia de camadas oferece uma visão histórica interessante com relação à aproximação do sobrenatural. Eico Suzuki usa o insólito em seu texto para amplificar as situações vividas por suas protagonistas femininas, não exatamente com a finalidade de assustar, mas a de evidenciar as críticas em suas histórias, como os modos sutis de violência e invisibilidade social da época. É mais uma obra esquecida da literatura brasileira que merece ser redescoberta, ressignificada dentro do gênero do terror e devorada por uma nova geração de leitores. Uma última curiosidade é que a arte da capa deste livro é de autoria do mestre da ficção científica brasileira, André Carneiro.
2 Comentários
Assim que li esta ótima resenha, corri a procurar no Estante Virtual e encontrei uma cópia autografada pelo autor por...12 reais! Comprei antes que ocorresse uma explosão de procura (e de preço, é claro) por conta da sua postagem (não é uma crítica, muito pelo contrário, obrigado por indicar a existência dessa pérola esquecida!).
ResponderExcluirNos primeiros anos do site passei muito por isso haha, indiquei vários livros que queria ler, antes mesmo de ter a chance de comprar, e as pessoas compraram todos os exemplares de sebos e eu fiquei sem ler. Fico triste quando vejo que os livros mais legais dos anos setenta e oitenta que já indiquei aqui estão sendo vendidos a um valor absurdo. Tenho uma lista gigantesca de livros antigos para indicar, tem muita coisa boa, agora eu faço questão de ou pegar livro numa biblioteca ou comprar antes de falar sobre. Fique de olho que vai ter muita indicação boa vindo por aí.
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