A Revista Diário Macabro é um dos projetos nacionais de literatura de gênero mais interessantes dos últimos anos, um espaço de publicação para autores iniciantes e seus contos de horror, que se destaca pela sua qualidade gráfica e de diagramação, bem como uma cuidadosa seleção das histórias, que garante ao leitor uma diversidade de estilos e ambientações, explorando os recônditos mais afastados e obscuros do país através das mais diversas vozes narrativas, configurando em um selo de qualidade que se tornou característica da iniciativa idealizada por Nathalia Sorgon Scotuzzi e Pedro Andrade.
As duas primeiras edições da revista Diário Macabro foram lançadas no ano de 2017, a publicação tem periodicidade semestral, sendo que o primeiro número apresenta um caráter mais experimental, além de sete contos originais, sendo um deles em inglês, possui uma tradução de Robert E. Howard feita pela própria editora Nathalia Scotuzzi, sem falar da marca registrada das publicações da Diário Macabro: ilustrações sombrias e assustadoras, que perfuram a mente através dos olhos, dando a entrever os horrores que esperam o leitor por entre suas páginas, inspirando uma prodigiosa safra de pesadelos. Enquanto o segundo volume, consideravelmente maior, apresenta oito contos originais, uma tradução de H. Beaugrand e uma entrevista com Rubens Francisco Lucchetti.
"Carne Fresca" de Leandro Henrique Cerquiari
Leandro Henrique Cerquiari abre a antologia com uma história que verte sangue de suas linhas, mesclando um estilo de escrita afiado e ágil às sangrentas descrições vívidas do gore transporta o leitor para um cenário de pesadelo logo na primeira cena, onde um jovem com o braço mutilado está imerso em lágrimas e sangue encostado na porta de um açougue, para então desconstruir essa imagem e recombinar os misteriosos pedaços daquela situação a fim de desvendar todas as ações e elementos que levaram o protagonista até aquela exata posição. É um conto sobre amor e morte, bem como a barreira frágil que os separa formada prioritariamente por lapsos de loucura. Qual a maior loucura de amor que você já fez?
"O Cenotáfio" de Eduardo Antonio Bonzatto
"O Cenotáfio" é um quebra-cabeça literário que consegue uma proeza interessante: surpreender o leitor de modos diferentes a cada releitura, como um objeto que adquire novos contornos conforme a perspectiva adotada, seu conto é um labirinto de palavras, poéticas e sedutoras, que conduz a uma leitura vertiginosa similar a uma ilusão de ótica, ao mesmo tempo que parece oferecer espaço para a imaginação do leitor interpretar o texto, também reflete um limbo de significados. Para uma experiência completa e imaculada é necessário iniciar a leitura com o mínimo possível de informações, na trama um homem em uma cadeira de rodas observa estranhos acontecimentos em sua vizinhança através através de sua janela.
"Dionísio" de Nathalia Sorgon Scotuzzi
"Dionísio" de Nathalia Sorgon Scotuzzi oferece uma narrativa clássica de vampiro, cujos parágrafos são alimentados por doses generosas de insanidade e obsessão, levando seu protagonista, um padre que devora literatura vampírica com um fervor tão ardoroso quanto uma hóstia em comunhão, aos limites de sua sanidade ao ter as raízes de sua fé desgastadas pelas traças do misticismo e do horror. É um conto curto e ágil que consegue ser efetivo em sua proposta, envolvendo a leitura no próprio ritmo frenético que consome o personagem.
"Amor" de Marco Antonio Amaral
"Amor" é uma história dilacerante e macabra sobre os limites do amor e as cicatrizes profundas que o outro deixa em nossa alma quando parte de forma abrupta, uma hábil exploração de como a dor pode ser tão forte a ponto de atingir os recônditos mais sombrios do coração de uma pessoa, ecoando sentimentos profanos e vozes amaldiçoadas que prometem recuperar aquilo que uma vez se perdeu. É um tema recorrente e comum em narrativas de terror, a busca de um homem para reaver um ente querido que já morreu, mas que aqui é executado com cuidado e de forma tão pungente que é difícil não sintonizar as emoções com o protagonista durante a leitura. A escrita é extremamente sensível e consegue de forma espetacular passar de uma realidade banal para um horror sobrenatural de forma verossímil sem que o próprio leitor tome consciência disso, a não ser quando é tarde demais. Este conto terá mais impacto em uma pessoa que já experimentou esse sentimento de perda.
"Família" de Marcos Tadeu Botelho Mageste da Silva
"Família" também mergulha no cerne sombrio dos relacionamentos humanos para discutir, através da ótica do terror, até que limite é possível conhecer a pessoa que você escolhe para viver ao seu lado pelo resto dos seus dias, além dos efeitos que o conhecimento de cada detalhe dos segredos sombrios que todos carregam em seu âmago tem em um relacionamento a longo prazo. O conto se utilizada da subversão do familiar em estranho para dar ignição ao horror, um jovem se apaixona por uma estranha misteriosa e logo engendram uma relação que ficará marcada por segredos cuja revelação mudará tudo para os dois.
"Os Tempos Estão Mudando" de Rochett Tavares
"Os Tempos Estão Mudando" de Rochett Tavares explora um mundo pós-apocalíptico povoado por zumbis, como uma espécie de metáfora para as mudanças de hábitos entre as gerações, sua narrativa desliza nos clichês do gênero ao explorar flashbacks de como o mundo acabou a partir da perspectiva do protagonista, um guitarrista arrancando os acordes de uma guitarra imerso em uma triste nostalgia, criando uma ambientação que não convence o leitor do gênero e trafega na maioria dos momentos pelo lugar comum."The Man With no Reflection" de Vanessa Cezarin Bertacini
"The Man With no Reflection" é um conto curto em que um espelho surge como instrumento de horror, na trama um homem descobre que a sanidade é extremamente frágil ao se defrontar com um mistério inquietante: sua imagem não reflete diante do espelho. Quando descobrir a solução para esse mistério, sua realidade se despedaçará.
"O Temido Toque da Morte" de Robert E. Howard
"O Temido Toque da Morte" é uma das pérolas que enriquecem este primeiro volume da Diário Macabro, um conto ágil que mistura uma profunda vivissecção do medo com um toque de humor macabro. Um homem descobrirá o verdadeiro sentido do pavor ao passar uma noite velando um cadáver sozinho, na escuridão, cada sombra e contorno conhecido se transformam em fonte de horror. É um clássico imperdível.
Diário Macabro I (2017) | Ficha Técnica
Organizadores: Nathalia Sorgon Scotuzzi e Pedro Andrade
Autores: Leandro Henrique Cerquiari et al.
Editora: Diário Macabro
Páginas: 68 páginas Compre: --
Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (9/10 Caveiras)
"Um Caso Documentado de Possessão Eletrodemoníaca" de Flávio Nigro
Flávio Nigro se utiliza do humor para construir uma narrativa ágil e afiada sobre o terror diário advindo da utilização de eletrodomésticos e suas obsolescências e revoltas programadas, eventos que sempre acontecem nos momentos menos oportunos em que há a maior necessidade daquele objeto."Aqui Todo Mundo É Feliz" de Felipe Teodoro
"Aqui Todo Mundo É Feliz" é uma história clássica de assombração centrada em um objeto amaldiçoado, neste caso um antigo guarda-roupas, cuja opressão emocional acarreta no protagonista um comportamento obsessivo que culmina em um clímax sangrento. Na trama um homem compra um guarda-roupas de um antiquário e descobre que a escuridão por trás daquelas portas antigas esconde segredos e horrores além da imaginação. A escrita é eficiente na criação do clima de suspense e prende o leitor até a última linha.
"A Bizarra Entrevista Com Nivaldo Fonseca" de Vitor Abdala
"A Bizarra Entrevista Com Nivaldo Fonseca" é uma original e arrepiante história de fantasmas, escrita de forma inteligente em um formato de entrevista jornalística que ratifica seu caráter assustador de verossimilhança. É sem sombra de dúvidas uma das melhores produções nacionais do gênero dos últimos tempos, a ambientação e construção do clima de horror, aliadas a desconstrução da sensação realidade e ceticismo do protagonista, realizada somente a partir de diálogos é perfeita. Na trama um jornalista entrevista um músico, Nivaldo Fonseca, que na década de oitenta desapareceu repentinamente da mídia e encerrou sua carreira envolto em mistério. O motivo para esse sumiço é cuidadosamente dissecado durante a conversa e a terrível verdade vem a tona em um caos de horror e desespero.
"A Noite Dos Seres Negros" de Rodrigo Kmiecik
"A Noite Dos Seres Negros" evoca o regionalismo e o horror cósmico para construir uma sólida história de terror sobre a batalha de um homem contra um horror inominável e desconhecido. Nos escombros de uma fazenda no interior do Paraná é encontrado um manuscrito que narra em detalhes desesperados os estranhos acontecimentos que causaram a destruição de uma família através da ação de pavorosas criaturas, os "seres negros". Com várias referências ao Cthulhu Mythos, em especial a Robert E. Howard, o conto consegue convencer o leitor de sua autenticidade como trama de horror cósmico, transpondo o universo de horrores de Lovecraft com perfeição o cenário rural brasileiro.
"Coceira" de Fidel Correia Borges
"Coceira" é uma história de body horror que transporta o leitor em uma desconfortável viagem de dessacralização da carne através de uma incurável e perniciosa coceira. Este é um dos temas mais comuns e recorrentes deste subgênero e que evoca rapidamente uma resposta empática de identificação no leitor aos horrores que o protagonista é submetido. A principal característica deste tipo de narrativa é a evolução gradual da violência a que o próprio corpo é submetido, partindo de um leve desconforto em relação a premissa proposta até a perda total do controle e da consciência sobre o corpo através de mutilações e outras ações desesperadas. É um tipo de história diferente do que o público brasileiro em geral tem acesso, de forma que seu valor neste contexto é inquestionável, apesar de no grande panorama geral do subgênero a trama permanecer no lugar-comum.
"A Filha Do Professor Carletti" de Daniel I. Dutra
"A Filha Do Professor Carletti" é mais uma história deste volume com inspirações na mitologia de H. P. Lovecraft, especialmente ao conto A Sombra Vinda do Tempo. A premissa é bastante similar a narrativa lovecraftiana e há várias homenagens intrínsecas no texto, o diferencial está nos contextos que o autor utiliza para contar a história da raça de Yith e suas viagens através do tempo por meio de uma trama de amor e crime ambientada no interior do Rio Grande do Sul. Este é um dos contos de Lovecraft preferidos por autores nacionais para reescrita e homenagens, é o quarto do gênero que leio e este em especial se destaca pela profundidade e cuidado ao criar sua ambientação narrativa, que neste caso provém de um manuscrito psicografado, além de seu desfecho interessante e inusitado para tramas deste tema.
"A Coisa no Fim do Beco" de M. da Fonte
"A Coisa no Fim do Beco" de M. da Fonte também mergulha no cerne dos horrores lovecraftianos para criar uma história de horror na qual também parecem ecoar grandes referências a Arthur Machen. Na trama um psiquiatra narra seu contato com uma paciente que acaba por abalar todas suas concepções de realidade e dos horrores que se escondem por trás do falso véu de segurança experienciado pela humanidade. Se utilizando da clássica narrativa de desconstrução do ceticismo do protagonista em consonância com o do leitor, a trama oferece um relato sombrio e efetivo dentro do que se propõe.
"Visualizado" de David Lotffi
"Visualizado" se aproveita do aparato tecnológico para criar tensão e suspense, de forma fragmentada, em episódicas e claustrofóbicas interações por mensagens de celular. A escrita acerta na medida exata entre a narração comum em terceira pessoa e a descrição de mensagens e vídeos para a construção efetiva da premissa, o compartilhamento em tempo real entre duas amigas de um sangrento massacre durante uma festa. O conto faz uma crítica interessante a necessidade de compartilhamento da vida privada nas redes sociais na atualidade, os riscos e perigos que essa ação desenfreada ocasiona ao revelar informações importantes, mas principalmente sobre a inércia que obriga a pessoas a registrar tudo, com a desculpa de guardar uma memória do evento, ao invés de realmente viver o momento com intensidade.
"Chasse-Galerie: O pacto" de H. Beaugrand
Fechando este segundo volume está "Chasse-Galerie: O pacto" de H. Beaugrand, com tradução de Luisa Fernandes Vital, versão de uma lenda popular canadense de pacto com o demônio e uma entrevista com Rubens Francisco Lucchetti sobre sua obra e contribuição para o pulp no Brasil. A revista Diário Macabro é uma leitura extremamente divertida para fãs do gênero, a diversidade de vozes narrativas, cada qual com seu estilo próprio, proporciona o ambiente perfeito para se descobrir novos autores, além de mais informações sobre os cenários brasileiros, capazes de serem tão assustadores quanto pântanos ingleses ou castelos medievais.
Diário Macabro II (2017) | Ficha Técnica
Organizadores: Nathalia Sorgon Scotuzzi e Pedro Andrade
Autores: Vitor Abdala et al.
Editora: Diário Macabro
Páginas: 144 páginas Compre: --
Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (9/10 Caveiras)
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