Em 1948 Shirley Jackson horrorizou a sociedade americana ao publicar um pequeno conto chamado The Lottery, uma estória tão violenta que chegou a ser banida de vários países e lhe rendeu uma onda de cartas agressivas repletas de reclamações de leitores. No conto a referida loteria acontece anualmente em uma pequena cidadezinha, com pouco mais de trezentos habitantes, no dia 27 de Junho, e consiste numa espécie de sorteio no qual cada da chefe de família escolhe um pedaço de papel e aquele que encontrar um círculo negro desenhado em um deles será o "ganhador" da vez.
Após essa etapa os integrantes da família escolhida realizam um novo sorteio entre si, com as mesmas regras, e aquele que for o vencedor será apedrejado até a morte. The Lottery é uma das primeiras estórias a abordar abertamente o tema dos jogos mortais. A realização de competições rituais nas quais os perdedores eram coroados com a morte não é exclusividade da era moderna, ao contrário, eram populares em civilizações antigas, um exemplo era o ancestral "futebol" com aros Maia onde o capitão do time perdedor era sacrificado em honra aos deuses.
Com o advento da televisão o indecente sadismo de ser expectador das misérias alheias alcançou níveis orgásticos de voyeurismo, programas de TV que exploram os limites da resistência humana através de confinamento filmado e batalhas entre competidores, que se humilham para conquistar a opinião pública são o prenúncio de um futuro sombrio.
Um futuro onde a eliminação do participante do programa pode significar literalmente a morte do jogador. Não chegamos tão longe ainda, mas a popularidade atual de reality shows com premissas similares é um aviso do horizonte amargo que nos espreita. Na literatura isso refletiu em visões pessimistas que vão desde A Longa Marcha e O Concorrente de Stephen King a clássicos modernos como Battle Royale de Koushun Takami. Mas onde entra The Game de Anders de la Motte neste contexto? Simples, o livro é uma crítica bem construída acerca da aceitação cada vez maior das pessoas ao mundo virtual como uma existência superior a própria realidade e a dependência cada vez mais simbiótica da tecnologia no modo de vida moderno.
The Game se diferencia das obras atuais por não se tratar de uma distopia, a construção do ambiente contemporâneo, com referencias que vão desde o uso indiscriminado dos celulares pela nossa geração ao exibicionismo virtual visando o maior número de visualizações possíveis, dá um tom de verossimilhança gigantesco a narrativa.
Atualmente parte das previsões orwellianas se concretizaram e somos observados diariamente sem ter noção disso, seja pela câmera de segurança de uma loja que ironicamente te manda sorrir ou no fundo de um vídeo amador de um estranho qualquer que você jamais saberá que participou. Anders de la Motte a partir desta premissa cria uma realidade em que há uma organização que se aproveita desta tecnologia para criar o Jogo.
O Jogo nada mais é que uma espécie de competição online baseada na realização de "missões" reais documentadas pelos próprios jogadores. Os candidatos são escolhidos a dedo pelos organizadores que levam em consideração singularidades que podem ser encontradas em qualquer jovem viciado em internet hoje em dia.
Os jogadores encontram uma espécie de telefone celular que servirá como forma de contato com o Mestre do Jogo, autoridade absoluta dentro do Jogo, quem distribui missões, prêmios e punições, além de produzir as imagens das missões que mais tarde serão colocadas no perfil do usuário na Comunidade do Jogo. Inicialmente as missões consistem em "pegadinhas" com pessoas aparentemente aleatórias e o cumprimento da mesmas acarreta um determinado número de pontos e dólares.
Mas conforme o jogo transcorre as missões inocentes acabam tornando-se mais complexas e os jogadores se veem incitados a transgredir leis em situações cada vez mais degradantes. Parar não é mais uma escolha. Qual seria seu limite em um situação assim.
Anders de la Motte escreve com propriedade sobre tecnologia, seu embasamento se dá através de sua experiência como segurança de uma das maiores companhias de tecnologia da informação do planeta. Seu ritmo narrativo é ágil e mescla o suspense sufocante dos thrillers com referências à cultura popular e uma dose ácida de humor sobre redes sociais e sua influência no modo de vida atual.
Como primeiro volume de uma trilogia The Game serve como uma introdução ao mundo por trás do Jogo, na verdade o leitor obterá poucas respostas e a sensação que fica é a mesma que permeia os sentimentos do protagonista, que o que conhecemos neste volume não é nada menos que a superfície do Jogo e que seu verdadeiro significado é muito mais sombrio que a primeira vista supõe. As páginas finais são uma explosão de ação e transbordam questões não respondidas. A conclusão não poderia ser mais chocante!
O Jogo (2015) | Ficha Técnica
Título original: Geim (2010)
Autor: Anders de la Motte
Tradutores: Alexandre Matias e Mariana Moreira Matias
Editora: Darkside Books
Páginas: 272 páginas
Compre: Amazon
Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (9/10 Caveiras)
3 Comentários
Muito interessante, as vezes tudo o que precisamos para ler um livro como esse é apenas uma boa resenha, um pequeno impulso para mergulharmos num mundo que está bem ali na nossa frente e não temos coragem ou disposição para seguir em frente. Mas uma resenha como essa não fornece apenas um pequeno impulso, mas sim um grande empurrão juntamente com um tapa na cara dando realmente uma vontade desgovernada de possuir não somente o livro principal, como também os livros ganchos que são usados como comparação a obra. E é só. obg.
ResponderExcluirCara, parabens pela Resenha... conseguiu nos engajar na historia, de modo que a gente sinta-se interessado, e nao le-la seria uma heresia... Poucas pessoas escrevem resenhas tao bem como essa.
ResponderExcluirCara, parabens pela Resenha... conseguiu nos engajar na historia, de modo que a gente sinta-se interessado, e nao le-la seria uma heresia... Poucas pessoas escrevem resenhas tao bem como essa.
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