Existem casos especiais nos quais a existência de um personagem fictício ultrapassa a de seu próprio criador, é o caso de Drácula e James Bond, nomes icônicos da literatura, cujo brilho fulgurante eclipsa a identidade das mentes por trás de suas estórias, Bram Stoker e Ian Fleming respectivamente. Ou ainda os casos de Sherlock Holmes de Sir Arthur Conan Doyle e o Necronomicon de H. P. Lovecraft, cujo reconhecimento por parte dos leitores é tão grande a ponto de se tornarem parte do imaginário popular, como figuras reais.
Zé do Caixão é um exemplo nacional desse tipo de ocorrência, criado por José Mojica Marins, é um personagem que saiu diretamente das telas do cinema para se tornar uma lenda urbana, um ser mitológico utilizado pelas mães brasileiras como paliativo a malcriação das crianças. Quem nunca deixou as unhas da mão crescerem e foi avisado por alguém que se se transformaria no Zé do Caixão. Em meados de 1963 um jovem brasileiro almejava o sucesso fazendo aquilo amava, cinema popular, com pouco dinheiro para custear suas produções usava toda sua inteligência e carisma para conquistar "patrocinadores", buscando auxílio de familiares e aspirantes a atores, que compravam cotas de participação.
Se você quisesse participar de um filme de Mojica era fácil, você desembolsava alguns cruzeiros e seria eternizado em película! O papel dependeria do quanto você poderia contribuir, se fosse generoso seria o protagonista, poderia beijar a mocinha e quem sabe até participar de uma cena mais "quente", mas se não tivesse muita coisa, bem... Filmes do terror sempre precisam de cadáveres não é? Após alguns fracassos e um modesto sucesso em filmes anteriores, Mojica buscava criar uma "fita" especial, que o arrancasse do anonimato para a boca do povo!
A resposta veio em forma de um pesadelo, Mojica sonhou que uma figura o arrastava por um cemitério, sentiu tanto medo que decidiu compartilhar esse horror com as pessoas, se conseguisse reproduzir metade do ambiente de seu sonho em um filme... No dia seguinte começou a trabalhar em um roteiro, o primeiro rascunho do clássico À Meia-Noite Levarei Sua Alma. Zé do Caixão é um coveiro temido pelos habitantes de uma pequena cidade do interior, descrente e sádico é conhecido por sua crueldade, um personagem estranho que se veste com capa e cartola pretas e caminha pelas ruas como se fosse superior a Deus e ao Diabo, ninguém possui coragem o suficiente para desafiá-lo e aqueles que tentam são brutalmente reprimidos.
Sua grande obsessão é gerar um filho perfeito e para isso não medirá esforços para colocar em ação seus planos maquiavélicos. O personagem imaginado por Mojica tinha tudo para ser um sucesso, com inspirações nos grandes clássicos de Karloff e Lugosi, ele planejava um filme macabro e sangrento que conquistasse o público pelas vísceras, À Meia-Noite Levarei Sua Alma possuía cenas explícitas de violência que até então ninguém tinha tido coragem de levar para um cinema. O resultado final foi tão chocante e expressivo para a época, que os expectadores ficaram embasbacados ao fim da projeção.
Prenunciando as quilométricas filas de blockbusters vindouros, como O Exorcista e Tubarão, Zé do Caixão foi o primeiro feto do cinema de horror nacional. Isso tudo é verdade, mas as coisas parecem tão belas e nostálgicas se colocadas através desta ótica que esquecemos que esta época foi marcada por um câncer no centro do poder brasileiro, a ditadura militar.
Para entender a história da "ascensão e queda" do Zé do Caixão é preciso retornar a meados dos anos sessenta quando o governo militar estava estabilizando seus tentáculos por todo o território nacional, ainda não estávamos no auge da censura, as coisas piorariam muito, mesmo assim a repressão era forte. Existia o chamado Serviço de Censura de Diversões Públicas, formado por censores que "zelavam pela saúde metal e física do jovem brasileiro", em outras palavras eram responsáveis pelo material final que 90 milhões de pessoas consumiam como entretenimento.
Nesse período a censura, "estuprou e mutilou" milhares de filmes, nacionais e estrangeiros, peças de teatro, músicas, telenovelas, radionovelas e até livros! Tudo o que fosse considerado contrário a moral da época era simplesmente cortado, muitos filmes eram lançados com tantos cortes que a própria narrativa era prejudicada, em alguns casos o filme era tão censurado que nem valia a pena liberar para o público o resultado final.
Mojica desde o início travou uma guerra contra a censura, que via em seus filmes uma propaganda contra a moral e aos costumes religiosos, a figura do anti-herói que pratica ações negativas e não é punido por isso era contrária ao pensamento do regime. Quando À Meia-Noite Levarei Sua Alma começou a fazer sucesso entre o público o filme foi interditado, dezenas de cenas foram extirpadas pelos censores e o filme só foi liberado após uma pequena modificação no final, que destruiu toda a questão da personalidade do Zé do Caixão, nos momentos "finais" de sua existência ele é obrigado a aceitar a salvação religiosa.
Qualquer outra pessoa desistiria de seu trabalho nessas condições, mas Mojica tinha um incrível talento para autopromoção e usou a própria censura para promover seu filme. Um artigo de jornal da época trazia uma entrevista em que ele afirmava que no escritório da "Censura", na primeira vez que assistiram ao filme todos ficaram horrorizados, "Inicialmente queriam queimar o filme e me prenderam!", Mojica havia dito. Esse tipo de declaração funcionava como combustível para a população, que incitada pelo sentimento de apreciação de algo proibido, em uma sociedade na qual expressar opinião contrária ao governo era mortal, lotava os cinemas.
É muito importante ressaltar que o terror sempre foi um gênero apreciado pelos brasileiros, exemplos disso estavam no rádio, nos anos cinquenta um programa chamado Incrível! Fantástico! Extraordinário! fazia sucesso ao trazer a figura do Almirante, narrando causos fantásticos de assombrações enviados pelos próprios ouvintes; e nas bancas de revistas e livrarias através da explosão dos quadrinhos de terror, no início dos anos sessenta haviam mais de 30 títulos diferentes sendo publicados regularmente, além dos famosos bolsilivros, com as coleções de livros de bolso de terror. Ou seja, havia um grande público para os filmes de Mojica.
O "horror" sempre foi uma das principais vítimas da censura, o gênero sempre esteve associado ao lado erótico e profano do homem, mesmo as narrativas mais simples evocavam uma cena forte, como a nudez de uma atriz ou uma cena explícita de violência, e geralmente eram barradas. Por mais sucesso que Mojica fizesse seus filmes passavam meses em tramite legal até serem liberados, alguns sendo terminantemente proibidos, cada dia perdido de projeção era prejuízo para os distribuidores e patrocinados, que logo começaram a rarear.
Mojica sem verba para fazer os filmes que gostava começou a rodar filmes encomendados, produções péssimas e roteiros furados cada vez mais afundavam seu nome. E então a explosão da pornochanchada nos anos oitenta levou a figura do Zé do Caixão à lama. Apesar de ter sido uma celebridade na década de sessenta e setenta, com programas populares na televisão, inúmeros produtos licenciados, como revistas em quadrinhos e fotonovelas criadas em parceria com o grande R. F. Lucchetti, e apesar de ser um nome reconhecido por muitos brasileiros, Zé do Caixão caiu no esquecimento.
Poucos hoje em dia conhecem a verdadeira história por trás do mito, mesmo com a grande maioria de seus filmes disponibilizados gratuitamente no youtube, apenas um pequeno número de brasileiros realmente já assistiu a algum deles. Se Mojica hoje é reconhecido como um mestre do cinema de terror, não não é por causa de nenhuma iniciativa do governo ou da própria classe brasileira, mas sim porque o mundo descobriu Coffin Joe.
Nos anos noventa as produções de Zé do Caixão explodiram no circuito underground americano, seus filmes foram premiados em festivais e seu nome ganhou peso no exterior. O devido reconhecimento nacional chegou tarde, quando seu nome voltou a mídia foi para um público novo, que não conhecia suas obras e não soube lhe dar o devido valor. Essa reedição de Maldito da Darkside Books chega em um momento providencial no mercado.
A edição da Darkside contém 666 páginas que dissecam a vida de Mojica Marins, grande parte delas recheadas de fotos e imagens arrepiantes de sua carreira, sendo as que as últimas cem trazem uma relação de todos os seus trabalhos. A escrita de Ivan Finotti e André Barcinski é extremamente ágil e didática, os autores conseguem transportar o leitor para a época em que a história ocorre, não apenas discorrendo sobre fatos da vida do biografado, mas também fazendo uma importante correlação com o contexto social da época.
Ler Maldito não é apenas mergulhar na vida de um dos personagens mais obscuros do cinema brasileiro, é também um olhar atento sobre a imigração no sudeste, a evolução do cinema nacional, em especial na influência da ditadura militar, e a gênese do pornochanchada nos anos oitenta. Exatamente por isso não é um livro indicado para pessoas frágeis ou menores de idade, há várias imagens explícitas além da abordagem de vários filmes do lado B do cinema nacional, cuja existência a mente incauta da atualidade apenas imagina, para citar um exemplo, 48 Horas de Sexo Alucinante, no qual a protagonista deseja ter relações sexuais com um touro.
Maldito combina perfeitamente imagens e textos em um resultado absolutamente impecável, com uma estrutura similar aos livros da Coleção Dissecando, como Evil Dead e Sexta-Feira 13, o livro traz uma dissecação dos bastidores das principais obras de Mojica, todos os problemas de produção, curiosidades macabras e a engenhosidade com que ele conseguia contornar e vencer os problemas. O tom se altera entre o dramático e o cômico, cada produção de Zé do Caixão sempre encontrava algum tipo de problema bizarro.
Um exemplo é o não filmado Sapos, a ideia era um filme que misturasse parapsicologia e catástrofe natural, similar a Pássaros e a Planeta dos Macacos, para a realização das filmagens Mojica pediu ao público que enviasse ao estúdio todos os anfíbios que encontrassem. O resultado você imaginar. É de praxe Zé do Caixão em qualquer aparição pública lançar uma das suas reconhecidas maldições, e essa reedição de Maldito serve como contrafeitiço para uma das piores maldições a que foi imposto, o esquecimento do público. Uma leitura marcante, emocionante e inspiradora.
Autores: André Barcinski e Ivan Finotti
Editora: DarkSide Books
Páginas: 666 páginas
Compre: Amazon
Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)
Nota: ☠☠☠☠☠☠☠☠☠☠ (10/10 Caveiras)
1 Comentários
O homem merece seu cargo de "maldito"...
ResponderExcluirZé do Caixão é uma lenda...